ESTAÇÃO DE ARTE KABANA

Localizada na antiga Vila Marzagão (1879), a meio caminho entre BH e Sabará, a Estação de Arte Kabana, sede do Grupo desde 1997, é um espaço ímpar. Abrigada em uma construção centenária, antigo depósito de algodão da Cia Fiação e Tecelagem Minas Gerais, o galpão possui 660 m2, 9m de pé direito, amplo telhado original, em telha francesa, pilares metálicos belgas e paredes de alvenaria com 70 cm de espessura.

A Estação Kabana está preparada para realização de espetáculos, oficinas, workshops e seminários, equipada com salas de ensaio, cozinha, banheiros, um amplo salão multiuso, arquibancadas móveis e equipamentos circenses, ateliê de cenografia, figurino e bonecos.

Fato importante e decisivo na trajetória do grupo, a chegada do Kabana no Marzagão foi um feliz encontro entre esse instigante espaço histórico de Minas e o desejo do grupo de consolidar um fazer artístico transformador, compromissado com o homem e seu tempo. E é dessa plataforma, da Estação Kabana, que o grupo se joga em novas pesquisas, compartilhamentos e sonhos para as próximas décadas.

VILA MARZAGÃO

Numa descrição datada de 1933, pode-se avaliar a complexidade e a grandiosidade da historia da Vila: "Marzagão é um pequeno arraial, encostado à linha tronco da Central, no caminho para o Norte, a meia hora de Belo Horizonte. A sua população é de perto de duas mil almas (...)"

Visitar, hoje, a Vila Marzagão, sítio histórico tombado pelo IEPHA em 2004, é também ter a oportunidade de mergulhar num passado recente da história de Minas, onde o apito do trem, as matas do entorno e as boiadas, que ainda atravessam a Vila diariamente, nos colocam em um cenário de Guimarães Rosa.

"Convidou consigo a Sinhá, comprando-lhe passagem para aquele intato lugar, empregou-a também na fábrica de Marzagão (...) Moraram numa daquelas miúdas casas pintadas, pegada uma a outra, que nem degraus da rua em ladeira... (Tutameia, Terceiras Estórias).

Curiosidades

O nome Marzagão faz alusão a uma feitoria portuguesa na costa da África, de onde vieram alguns colonizadores das Minas.
Desde o século XVIII o distrito de Marzagão pertencia à Comarca de Sabará. Na 2ª metade do século XIX, quando da constituição da Cia Industrial Sabarense, Marzagão era distrito do Curral del Rei. Permaneceu integrando o município de Belo Horizonte até 1937. Em 17 de dezembro de 1938 o distrito foi desmembrado do território municipal de BH, passando a integrar o município de Sabará.
Além dos modernos equipamentos com que era operada a Fábrica de Marzagão, a Vila possuía ainda: Posto médico, açougue, torrefação de café, estábulo, padaria, oficinas mecânicas, carpintaria, fundição, serraria, olaria, campo de esportes, piscina e cinema.
Em 1946, recenseamento realizado pelo IBGE informa que o distrito tinha uma área de 43 Km2 e sua população estava próxima dos 2.400 moradores, em sua maioria absoluta vinculados à Fábrica de Marzagão e à fazenda de mesmo nome.
Com a vitória de Juscelino Kubstichek à Presidência da República, e a abertura do mercado interno ao capital estrangeiro, tem início a decadência da Fábrica de Marzagão.
Em 1961, após 2 meses sem receberem seus salários, os operários da Fábrica e seus familiares realizam a famosa "Passeata da panela Vazia".
O Conjunto arquitetônico do Marzagão é composto de edificações industriais e residenciais. O antigo depósito de algodão é atualmente a sede do Grupo Teatro Kabana, a Estação de Arte Kabana.
A Vila Marzagão é cenário do conto Sinhá Secada (Tutameia, Terceiras Estorias), de Guimarães Rosa.
O conjunto arquitetônico e paisagístico da Vila Marzagão (séculos XIX e XX) teve seu tombamento aprovado pelo IEPHA - Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – em 26/10/2004.

SINHÁ SECADA

JOÃO GUIMARÃES ROSA

Vieram tomar o menino da Senhora. Séria, mãe, moça dos olhos grandes, nem sequer era formosa; o filho, abaixo de ano, requeria seus afagos. Não deviam cumprir essa ação, para o marido, homem forçoso. Ela procedera mal, ele estava do lado da honra. Chegavam pelo mandado inconcebíveis pessoas diversas, pegaram em braços o inocente, a Senhora ainda fez menção de entregar algum ter, mas a mulher da cara corpulenta não consentiu; depois andaram a fora, na satisfação da presteza, dita nenhuma desculpa ou palavra.
Muitos entravam na casa então, devastada de dono. Cuidavam escutar soluço, do qual mesmo não se percebendo noção. Sentada ela se sucedia, nas veras da alma, enfim enquanto repicada de tremor. Iam lhe dar água e conselhos; ela nem ouvia, inteiramente, por não se descravar de assustada dor. - "Com quê?"- clamou alguém, contra as escritas injustiças sem medida nem remédio. Achavam que ela devia renitir, igual onça invencível; queriam não aprovar o desamparo comum, nem ponderar o medo do mundo, da rua constante e triste. Ela continha na mão lembrança de criança, a chupeta seca. - "Uf!"_ e a gente se fazendo mal, com dó, com dúvida de Deus em escuros. Do jeito, o fato se endereçou, começador, no certo dia.
No lugar, por conta de tudo, mães contemplavam as filhas, expostas ao adiante viver, como o fogo apura e amedronta, o que não se resume. Decidia o que aquela? Tanto lhe fosse renegar e debater, ou se derrubar na vala da amargura. De lá, de manhã, ela desaparecera. Recitavam vozes: que numa prancha do trem-de-lastro tinham lhe cedido viagem, para por aí ir vadiar, mediante algum mal amor. Sem trouxa de roupa, contavam que com até um pé descalço. Desde o que, puniam já agora as mães suas arregaladas filhas, por possíveis airadas leviandades mais tarde. Dela não se informavam; dera-lhes esquecimento.
Entanto errados. Ela apenas instricta obediente se movera, a variável rumo, ao que não se entende. Deixara de pensar, o que mesmo nem suportasse - hoje se sabe - ao toque de cada ideia em imagem seu coração era mais pequeno. O menino sempre ausente rodeava-a de infinidade e falta.
Tomara, em dois, três dias, o aspecto pobre demais, somente sem erguer nem arriar rosto: era a sã clara coisa extraordinária - o contrário da loucura; encostava no ventre o frio d as palmas das mãos. Por isso com respeito a viu e ofereceu-lhe meio copo de cerveja e um pastel de tabuleiro a Quibia, do Curvelo, às vezes adivinhadora. - "Sinhá..." - sentiu que assim devia chamar-lhe, ajeitando-lhe o vestido e os cabelos, ali no rumor da estação. Tinha uma filha, a quem estava indo ver, opostamente, a boa preta Quibia. Convidou consigo a Sinhá, comprando-lhe passagem para aquele intato lugar, empregou-a também na fábrica de Marzagão. Sobre os anos, foi pois quem dela pode testemunhar o verossímil.
Moraram numa daquelas miúdas casas pintadas, pegada uma a outra, que nem degraus da rua em ladeira, que a Sinhá descia e subia, às horas certas, devidamente, sendo a operária exemplar que houve, comparável às máquinas, polias e teares, ou com o enxuto tecido que ali se produz. Não falava, a não ser o preciso diário. Deixavam-na em paz, por nela não reparar, até os homens. Só a Quibia vigiava-lhe a sombra e o sono. Donde o coligido _ de relato _ o que de suas escassas frases razoáveis se deduz.
 Sinhá prosseguia, servia, fechada a gestos, ladeando o tempo, como o que semelha causada morte. Tomava-lhe a filha casada da Quibia, por empréstimos, quase todo o ordenado, já que a ninguém ela nada recusava, queria nada: não esperar; adiar de ser. A bem dizer quase nem comia, rejeitava o gosto das coisas, dormia como as aves desempoleiradas. Nem um ingrato minuto da arrancada separação poderiam restituir-lhe! Que é que o tempo tacteia? Os dias, os meses, por dentro, em seu limpo espírito, se afastavam iguais.
Decerto não a prezavam, em geral, portanto; junto dela pareciam urgidos de cuspir e se gabar. Ora a suspeitassem mulher inteligente endurecida, socapa de perfeita humildade. De propósito nem os buscando nem evitando, acatava contudo de um mesmo modo os trelosos meninos, os mais velhos comuns, os moços e moços, príncipes, princesas. Quibia, sim, não duvidou, ainda que ouvida a pergunta que a Sinhá se propunha: quando, em apontada ocasião, cometera culpa? E a resposta _ de que, então, só se tivesse procedido mal, a cada instante, a vida inteira... Daí, quedava, estalável, serena, no circuito do silêncio, como por vezo não escavam buracos na barragem de um açude.
No filho, no havido menino, vez nenhuma falou _ nem a Quibia de nada soube, a não ser ao pôr-lhe a vela na mão, mais tarde; _ feito guardado em cofre. Seus olhos iam-se empanando encardidos, ralos os cabelos. Durante um tal tempo, nunca mais se olhara em espelho.
Derradeiramente, porém, tiveram de notar. Ela se esparzia, deveras dona, os olhos em espécie: de perto ou de longe, instruía-os, de um arejo, do que nem se sabe. Por sua arte, desconfiassem de que nos quartos dos doentes há momentos de importante paz; e que é num cantinho que se prova melhor o vivo de qualquer festa, entre o leal cão e o gato do borralho.
 _ "Se ela viesse mais à igreja, havia de ser uma Santa..."_ censuravam. Passava espaços era acarinhando pedaço de   pedra, sem graça, áspera, que trouxera para casa; e que a Quibia precioso conservou, desde a última data. Sinhá, no mais, se esquecia ali, apartada, entrava no mundo pelo fundo, sem notícias ou lembranças. Sim, estas, depois.
Primeiro, um moço, estrito e bem trajado, chegou, subiu a ladeira, a quentes passos. Queria, caçava, sem sossego, o paradeiro de sua mãe, da qual também malvadamente separado desde meninozinho: e conseguira indicação, contadas conversas; também o coração para cá intimado o puxando... Seria ela?!
Não _ era não _ se conferiu, por nomes e fatos. O moreno moço sendo de outro lugar, outra sumida mãe, outra idade. Só o amor dando-se o mesmo, vem a ser, que o atraíra de vir, não por esmo.
Mas, ela, que sentada tudo recebera, calada, leve se levantou, caminhou para aquele, abençoando-o, pegou a mão do tristonho moço, real, agora assim mesmo um tanto conformado. Sorria, a Sinhá, como nunca a tinham avistado até ali, semelhava a boneca de brincar de algum menino enorme. Seu esqueleto era quase belo, delicado. Nesse favor de alegria persistiu, todos exaltando o forte caso. Seja que por encurtado prazo. Até ao amanhecer sem dia.
À Quibia ela muito contou; e fechou, final, os novos olhos. O caixão saiu, devagar desceu a ladeira, beirou o ribeirão rude de espumas em lajedo, e em prestes cova se depositou, com flores, com terra que a chuvinha de abril amaciava.
Quibia, entretanto, enfim ciente, meditou, nos intervalos de prantos, e resolveu, com sacrifícios. Retornou ao Curvelo, indagou, veio enfim àquele arraial, onde tudo, tão remoto, principiara.
Mas - o menino? Morreu, lhe responderam. Anjinho, nem chegara a andar nem falar, adoecido logo no depois do desalmoso dia, dos esforços arrebatados.
Quibia relanceou _ o passado, de repente movente, sem desperdícios. Se curvou, beijando ali mesmo o chão, e reconhecendo: _ "Sinhá Sarada..."